Favelas do Rio lutam contra o coronavírus
(Rio de Janeiro, brpress) - Lideranças, organizações comunitárias e instituições, como a Fiocruz, e até tráfico se unem na tentativa de evitar COVID-19, apesar das condições precárias. Por Juliana Resende.
(Rio de Janeiro, brpress) – O Dia Mundial da Água (22 de março), que coincidiu com o começo das medidas de isolamento social no Brasil, trouxe um paradigma às favelas do Rio: “Lavar as mãos sempre como, se as pessoas não têm nem água em casa?”, pergunta a ativista Camila Santos, do coletivo Mulheres em Ação no Alemão, se referindo à principal recomendação para evitar a contaminação pelo novo coronavírus.
As autoridades “lavam as mãos” enviando carros-pipa onde saneamento básico é luxo. Somando cerca de 250 mil habitantes (dos cerca de 1,5 milhão que vive em favelas no Rio), os complexos da Maré e do Alemão, além de Manguinhos – onde havia pelo menos um caso de COVD-19 confirmado até a última segunda-feira (23/03) –, estão agindo por conta própria, sem esperar iniciativas do poder público.
#SELIGANOCORONA
Manguinhos, onde o esgoto corre a céu aberto e o lixo se acumula, tem como vizinha a Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), o maior centro de pesquisa e produção científica e tecnologia em saúde da América Latina. A instituição é parceira na campanha #SELIGANOCORONA que está em curso e deve se intensificar nos próximos dias.
O primeiro caso de COVID-19 confirmado nas favelas do Rio foi na Cidade de Deus – local que dá nome ao único filme brasileiro até agora a receber quatro indicações ao Oscar, nas categorias de Melhor Diretor, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição e Melhor Fotografia. Até a última atualização desta reportagem, havia 305 casos de contaminação por cornonavírus nas favelas do Rio.
Na Cidade de Deus e outras comunidades, traficantes e milicianos estabeleceram toques de recolher. Além de ameaçar moradores que forem flagrados circulando após as 20h, financiam carros de som dando a ordem: “Fique em casa”. Quem desobedecer poderá ser punido, avisam.
Precariedade
As favelas têm um “ecossistema” diferente de áreas mais abastadas – onde até agora se concentram os casos de COVID-19 no Rio –, portanto precisam de um protocolo específico, quase impossível de ser cumprido, contra o coronavírus.
Segundo os institutos Data Favela/Locomotiva, o Brasil tem 13,6 milhões de pessoas morando em favelas e no estado do Rio de Janeiro 13% da população vive nestes territórios. São locais densamente populosos – alguns têm mais habitantes que municípios –, aglomerados, com precárias condições de moradia e, em muitas partes, sem acesso à água.
Não é só saneamento que falta – não são raros locais onde há escalonamento de disponibilidade nas torneiras. Ou seja: falta água dia sim, dia não.
Torneira seca
A Defensoria Pública do Rio entregou à Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae) um relatório com pelo menos 475 denúncias recebidas de falta d’água. Dessas, 397 são de “torneira seca”. As reclamações vêm de 140 lugares, a grande maioria em favelas, diz a Defensoria.
Para “lavar as mãos” é preciso estocar água, criando um vetor para outras doenças. “Agir contra o coronavírus nas favelas é uma urgência institucional”, define a jornalista Luiza Gomes Henriques, responsável pela comunicação da Coordenação da Cooperação Social da Fiocruz.
Emergência institucional
A velocidade da verticalização da curva epidemiológica da COVID-19 e a impossibilidade de isolamento social nas favelas, em casas pequenas, sem ventilação e com várias pessoas, e a falta de água tornam essa população muito vulnerável.
Segundo ainda o Data Favela, 47% da opulação de favelas trabalha por conta própria. Seja na informalidade, na chamada gig economy, que vai de motorista de aplicativos a bicos ou em negócios próprios. Cerca de 19% estão empregados, geralmente em áreas essenciais de serviços ou comércio.
Transporte público
No transporte público, a orientação é não tocar em nada e higienizar-se com sabão após o uso. “O mais absurdo é que no primeiro dia de quarentena oficial no Rio, o transporte público parecia cheio, com pessoas se aglomerando nos ônibus”, observa o médico Paulo Buss, diretor do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz.
“Com a desculpa da baixa demanda, há pouca frota circulando na cidade”, continua. A Rio Ônibus chegou a ameaçar tirar coletivos de circulação, mas segue com metade da frota inoperante – o que é insuficiente para evitar aglomerações.
“Num momento como este deveria ser justamente o contrário, para que os usuários possam manter distância de pelo menos um metro umas das outras”, completa Buss. Passageiros de trens da Supervia e no terminal das barcas em Niterói também lotam vagões e terminais.
‘Lado desigual da desigualdade’
O movimento se organizou para fazer a própria conscientização na favela, que “por viver do lado desigual da desigualdade”, como diz o comunicado, “não se vê representada nas dicas do Ministério da Saúde [ao qual a Fiocruz é ligada] sobre como se prevenir do coronavírus”.
O ativista Raul Santiago informa que faixas e comunicados foram colados nos postes, panfletos têm sido distribuídos, juntamente com conversas pelas ruas da favela que tentam alertar para o alto risco de contaminação pelo coronavírus “considerando a nossa realidade”.
Aqueles que circulam nas favelas, como os agentes comunitários de saúde, no atendimento corpo-a-corpo, estão sendo vistos como potenciais vetores. Além de monitorados, esses profissionais de saúde fundamentais também vêm enfrentando preconceitos em comunidades, onde o distanciamento social é praticamente impossível.