Coloque um sorriso nessa cara
brpress) - Ria. Ria de si mesmo. De sua própria desgraça. Só assim poderá rir da desgraça alheia. Do mundo pavoroso. Ria para não chorar. Esse é o lema do Coringa de Joaquin Phoenix. Por Juliana Resende.
(brpress) – Ria. Ria de si mesmo. De sua própria desgraça. Só assim poderá rir da desgraça alheia. Do mundo pavoroso. Ria para não chorar. Esse é o lema de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix, magnífico), o portador da síndrome Pseudobulbar que sonha em ser comediante até que cansa de apanhar e começa a bater. Esse é o Coringa (Joker, 2019), de Todd Phillips. Um tratado sobre maus tratos e loucura.
Dá medo ver a transformação de um palhaço inofensivo e esquisitão num psicopata com P maiúsculo. P de piada. P de pirado. P de Pseudobulbar – condição rara que faz os portadores rirem e chorarem sem controle, entre outras coisas –, a única fonte de laboratório para Phoenix, segundo ele próprio. “O pior de ter uma doença mental é as pessoas quererem que você aja como alguém normal”, escreve Arthur, em seu caderninho de anotações mais assustador que o rascunho do inferno.
A construção do vilão que aterroriza Gotham City – uma metáfora da NY decadente dos anos 80 – não poderia ser mais convincente. Afinal, esse é um filme para chamar de seu. Só seu. Ninguém (nem Robert De Niro, como um apresentador que Arthur idolatra) parece ter força suficiente para contracenar com a intensidade e entrega de Joaquin Phoenix ao seu Coringa. Pele e osso (o ator de 44 anos é vegano e diz que fez “uma dieta radical” para o filme), com aquele olhar que lhe é característico, Phoenix é cotadíssimo para o Oscar (agora vai levar?).
Piti
A Academia terá de engolir este freak que deu piti numa entrevista ao Telegraph. Levantou e saiu da sala quando o jornalista perguntou o que ele acha dos rumores de que Coringa incita a violência e encoraja psicopatas (até o exército americano está de prontidão para a estreia, em 03 de outubro). O ator se irritou como é de praxe – Phoenix odeia dar entrevistas e faz questão de parecer ainda mais esquisito na vida real. Não olha em direção ao entrevistador e balbucia respostas no vários ‘fuck’ no meio.
O diretor de Se Beber, Não Case! (estrelado por Bradley Cooper, produtor de Coringa) ganhou o Leão de Ouro em Veneza este ano com um filme em que a comédia dá lugar à tragicomédia. “Nossa maior inspiração para criar este Coringa foi o filme O Homem que Ri [filme-transição do cinema mudo para o sonoro, de 1928, do cineasta expressionista alemão Paul Leni*]”, disse Phillips, na entrevista coletiva no Festival de Veneza 2019.
A embriaguez de Arthur está no riso histérico compulsivo e seus “companheiros de bebedeira” são o desamor e a dor. O Coringa, que Todd Phillips disse ter criado com uma foto de Phoenix na parede, é uma desconstrução dark do time de super-heróis altruístas, lindos e superdotados que a DC e Marvel andaram colocando nas telas.
Jugular
Coringa é um filme que te pega pela jugular. Você tenta engolir a seco mas não desce. Não se trata de um filme repugnante – ao contrário, é um filme dramático, triste, sobre abandono, solidão, inocência e a perda dela. Um filme político (daí a prontidão das Forças Armadas dos EUA), sobre a luta de classes e as injustiças.
Um filme de arte – Coringa é um artista em sua essência, dotado de mais senso de marketing que de talento, mas certamente de muita graça – especialmente quando dança (Phoenix teve aulas de expressão corporal e isso faz toda a diferença na composição desse personagem que agora é o fascínio das massas e dos cinéfilos).
Palhaços
No purgatório urbano, a revolução é feita por palhaços – não foi assim que o bilionário Wayne, candidato a prefeito, chamou o povo? O motim coletivo que faz NY arder em chamas inspirado no Coringa é mais amedrontador que o proprio. O personagem é trágico, pesado, mas também é leve quando se assume um lunático sem medo de sangue, sem medo de si mesmo, sem nada a perder. Ele é delicado, criativo, elegante até. Há uma sofisticação psicológica no Coringa que poucos super-heróis se dão ao luxo.
O filme tem um toque vintage, desde os letreiros, uma homenagem ao DNA de Hollywood e da indústria do entretenimento. A trilha sonora não original (esta é de ildur Guðnadóttir, da série Chernobyl, da HBO) remete aos musicais, a filmes de sapateados como os do ator e dançarino Ray Bolger (o espantalho de O Mágico de Oz) – especialmente The Old Soft Shoe
(1957). Foi a partir daí que Phoenix – que costumava fazer coreografias com os irmãos (incluindo o falecido River Phoenix) nas ruas quando criança – decidiu que Coringa dançaria depois de matar.
O resto é para ficar na história do cinema.
(*) O Homem que Ri (The Man Who Laughs) é conhecido pela assustadora caracterização do personagem principal (Conrad Veidt), cuja face desfigurada o faz parecer com um sorriso perene e que leva o filme a ser classificado como de terror.
(Juliana Resende/brpress)
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Assista ao trailer de Coringa: